terça-feira, 6 de novembro de 2007

Nossa Senhora do Silêncio


"Às vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e me seca, e o meu único sonho só pode ser o pensar nos meus sonhos, é então que me interrogo sobre quem tu és, Nossa Senhora do Silêncio... Figura que atravessa todas as minhas visões demoradas de paisagens outras, de interiores antigos, de cerimoniais faustosos de silêncio.
Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência e de desumanidade. Talvez eu não tenha outro sonho senão tu. Talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que lerei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos.
Que espécie de vida tens? Que modo de ver é o modo como te vejo? Teu perfil nunca é o mesmo mas nada muda. Eu digo isso porque eu sei, ainda que não saiba o que sei. Tu não és mulher, nem mesmo dentro de mim evocas qualquer coisa que eu possa sentir feminina. É quando falo de ti, é quando as palavras te chamam fêmea e as expressões te contornam de mulher que eu tenho de te falar com ternura e amoroso.
Ocupas o intervalo dos meus pensamentos e os interstícios das minhas sensações. Por isso eu não penso nem sinto mas os meus pensamentos são ogivais de te sentir e os meus sentimentos góticos de evocar-te.
Ah Nossa Senhora do Silêncio! Ó Lua de memórias perdidas sobre a negra paisagem do vazio da minha imperfeição. Debruço-me sobre o teu rosto branco nas águas nocturnas do meu desassossego, no meu saber que és lua. "
Bernardo Soares, in '
Livro do Desassossego'

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Monólogo de Orfeu - Vinicius de Moraes


Mulher mais adorada!Agora que não estás, deixa que rompaO meu peito em soluços! Te enrustisteEm minha vida; e cada hora que passaÉ mais por que te amar, a hora derramaO seu óleo de amor, em mim, amada...E sabes de uma coisa? Cada vezQue o sofrimento vem, essa saudadeDe estar perto, se longe, ou estar mais pertoSe perto, – que é que eu sei! Essa agoniaDe viver fraco, o peito extravasadoO mel correndo; essa incapacidadeDe me sentir mais eu, Orfeu; tudo issoQue é bem capaz de confundir o espíritoDe um homem – nada disso tem importânciaQuando tu chegas com essa charla antigaEsse contentamento, essa harmoniaEsse corpo! E me dizes essas coisasQue me dão essa força, essa coragemEsse orgulho de rei. Ah, minha EurídiceMeu verso, meu silêncio, minha música!Nunca fujas de mim! Sem ti sou nadaSou coisa sem razão, jogada, souPedra rolada. Orfeu menos Eurídice...Coisa incompreensível! A existênciaSem ti é como olhar para um relógioSó com o ponteiro dos minutos. TuÉs a hora, és o que dá sentidoE direção ao tempo, minha amigaMais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada!A beleza da vida és tu, amadaMilhões amada! Ah! Criatura! QuemPoderia pensar que Orfeu: OrfeuCujo violão é a vida da cidadeE cuja fala, como o vento à florDespetala as mulheres - que ele, OrfeuFicasse assim rendido aos teus encantos!Mulata, pele escura, dente brancoVai teu caminho que eu vou te seguindoNo pensamento e aqui me deixo renteQuando voltares, pela lua cheiaPara os braços sem fim do teu amigo!Vai tua vida, pássaro contenteVai tua vida que estarei contigo!