sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Fera Ferida


Acabei com tudo, escapei com vida

Tive as roupas e os sonhos rasgados na minha saída

Mas saí ferido, sufocando o meu gemido

Fui o alvo perfeito muitas vezes no peito atingido.

Animal arisco, domesticado esquece o risco

Me deixar enganar e até me levar por você

Eu sei, quanta tristeza eu tive

Mas mesmo assim se vive morrendo aos poucos por amor

Eu sei, que o coração perdoa

Mas não esquece à toa e eu não esqueci

Não vou mudar, esse caso não tem solução

Sou fera ferida, no corpo e na alma

E no coração

Quero ficar no teu corpo feito tatuagem

Que é pra te dar coragem

Pra seguir viagem

Quando a noite vem

E também pra me perpetuar em tua escrava

Que você pega, esfrega, negaMas não lava

Quero brincar no teu corpo feito bailarina

Que logo se alucinaSalta e te ilumina

Quando a noite vemE nos músculos exaustos do teu braço

Repousar frouxa, murcha, farta

Morta de cansaço

Quero pesar feito cruz nas tuas coisas

Que te retalha em postas

Mas no fundo gostas

Quando a noite vem

Quer ser a cicatriz risonha e corrosiva

Marcada a frio, a ferro e fogo

Em carne viva

Corações de mãeArpões, sereias e serpentes

Que te rabiscam o corpo todo

Mas não sentes

Se essa ruaSe essa rua fosse minha

Eu mandavaEu mandava ladrilhar

Com pedrinhasCom pedrinhas de brilhante

Só pra verSó pra ver meu bem passar

Nessa ruaNessa rua tem um bosque

Que se chamaQue se chama solidão

Dentro deleDentro dele mora um anjo

Que roubou

Que roubou meu coração

Se eu roubeiSe eu roubei teu coração

Tu roubasteTu roubaste o meu também

Se eu roubeiSe eu roubei teu coração

Foi porque

Só porque te quero bem

Sou eu


Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo, Espécie de acessório ou sobressalente próprio, Arredores irregulares da minha emoção sincera, Sou eu aqui em mim, sou eu. Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou. Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma. Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim. E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente, Como de um sonho formado sobre realidades mistas, De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico, Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima. E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua, Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda, De haver melhor em mim do que eu. Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa, Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores, De haver falhado tudo como tropeçar no capacho, De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas, De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida. Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica, Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar, De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo ¿ A impressão de pão com manteiga e brinquedos De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina, De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela, Num ver chover com som lá fora E não as lágrimas mortas de custar a engolir. Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado O emissário sem carta nem credenciais, O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro, A quem tinem as campainhas da cabeça Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima. Sou eu mesmo, a charada sincopada Que ninguém da roda decifra nos serões de província. Sou eu mesmo, que remédio! ... (Álvaro de Campos)